Desconstruindo o “descobrimento” do Brasil

por Raphael Silveira

Quando se trata da História do Brasil, é comum encontrarmos versões que começam com a chegada dos portugueses nas terras tupiniquins, em todo seu heroísmo, com o propósito de civilizar os povos indígenas – fazendo-os aderir aos costumes europeus e os catequizando com todo seu amor cristão. Mas a verdade é que as coisas não aconteceram dessa forma. Inclusive, é incorreto pensar que os portugueses chegaram para civilizar os indígenas, uma vez que esses povos já possuíam cultura, língua e organização social como qualquer outra civilização. São esses conceitos (e alguns outros que envolvem o “descobrimento” do Brasil) que esse texto se propõe a discutir. 

Por trás da nada “heroica” chegada dos portugueses ao Brasil, havia uma Europa que passava por diversas crises (desde o século XIII): problemas com terras para agricultura; adversidades na saúde da população, como a Peste Negra; e muitas tensões políticas, como a revolução de 1383, por exemplo, que reforçou e centralizou o poder monárquico e fez com que setores sociais se agrupassem, dividindo-se entre nobreza, comerciantes, e outras categorias. 

Diante desse cenário, a Coroa portuguesa se viu obrigada a encontrar alternativas para lidar com tantas crises, e diversos fatores serviram de incentivo para investir em navegações e na Expansão Marítima, tais quais sua posição geográfica (com uma enorme costa litorânea), o movimento econômico com o Mundo Islâmico; e a proximidade à costa da África e ilhas do Atlântico.

A ideia da Expansão Marítima era interessante para diversas classes e instituições da sociedade portuguesa na época. Para os comerciantes, era uma oportunidade de negócio. Para os nobres e membros da Igreja, era uma forma de servir ao rei para conquistar cargos e recompensas de prestígio, enquanto o rei se aproveitaria disso como oportunidade de criar novas formas de receitas; e para o povo, a expansão era vista como uma chance de recomeçar uma vida longe do sistema de opressão da Coroa. Em linhas gerais, a Expansão Marítima se tornou um projeto nacional cujo interesse era quase uma unanimidade.

Todo esse contexto por trás da Expansão Marítima é importante para termos em mente que a chegada dos portugueses no Brasil não foi um completo acidente ou algo do acaso. Há teorias que defendem a ideia de que foi uma “descoberta”, e que o objetivo dos portugueses ao embarcarem  na nau Vasco da Gama era chegar às Índias (Oriente). Porém, todos esses fatores citados acima, aliados à chegada de Colombo na América (que antecedeu a dos portugueses no Brasil), indicam que não foi um desembarque despretensioso; portanto, essa teoria de “descobrimento” da América deve ser questionada com veemência. 

Nesse ponto, a desconstrução da ideia de “descobrimento” do Brasil é importante, pois ela cria em nosso imaginário a concepção de uma terra completamente desconhecida e inabitada, o que sabemos não ser o caso do Brasil.

Fonte: Blog ‘Nos Tempos da Literatura

Existem vários estudos arqueológicos indicando que a ocupação de populações paleoíndias (paleo = antigo) se deu há cerca de 12 mil anos. Foram feitas escavações que encontraram material utilizado por populações existentes há milhares de anos, os quais indicavam registros de sociedades complexas, sofisticadas no desenvolvimento tecnológico e na organização social. Isso prova de maneira clara que os portugueses não chegaram numa terra desabitada ou ocupada por selvagens que foram agraciados pelo conceito europeu de civilização; o que aconteceu aqui foi a invasão de um território, já ocupado há milhares de anos por povos com suas respectivas culturas, saberes e organizações sociais distintas. Em um amplo território continental como o Brasil, é natural que tenham existido e ainda existam diversas culturas e povos diferentes. 

É possível distinguir os povos originários destas terras, chamados de ameríndios pelos portugueses, em dois blocos que se subdividem, com base em sua cultura: os tupis (também conhecidos como tupinambás) e os guarani, comumente citados como tupi-guarani por partilharem a mesma língua e alguns aspectos culturais. A ocupação de ambos se estendia por boa parte do território do litoral brasileiro, salvo algumas regiões ocupadas pelos goitacás, aimorés, tremembés, entre outros.

Importante salientar que alguns desses povos eram descritos em cartas por padres, os quais registravam seu contato com alguns povos indígenas de maneira pejorativa, denominando-os genericamente como Tapuios. Em suas descrições, os povos que demonstravam maior resistência às violências e imposições portuguesas eram tachados de canibais e/ou selvagens; o que esclarece quando, em algum relato português, um povo era chamado de rebelde ou outro adjetivo pejorativo.

A diversidade dos povos e sociedades indígenas era muito grande e, naturalmente, alguns deles tinham conflitos entre si. A partir disso, foi possível que os portugueses firmassem certas “alianças” com alguns grupos, obtendo ajuda para lidar com os povos que se opunham a eles. Isso evidencia que ocorreram lutas e que, diferente do que é contado sobre a chegada dos lusitanos em terras tupiniquins, não houve uma relação tão amistosa entre os nativos e os forasteiros, mas sim, grandes conflitos, principalmente contra as tentativas portuguesas de escravizar os indígenas.

Os povos originários que se submeteram ou foram submetidos aos portugueses sofreram com violência cultural, sexual, mortes brutais, genocídio e doenças trazidas da Europa. Como estratégia de sobrevivência individual e de preservação das suas sociedades e culturas, os indígenas passaram a se deslocar de maneira contínua para regiões cada vez mais remotas e marginalizadas, com menor abundância de recursos naturais, entre eles o pau-brasil.

Nos primeiros anos da colonização, entre 1500 e 1535, a principal atividade era a extração do pau-brasil – prática comum entre os grupos da etnia Tupinambá.  Majoritariamente, a extração era feita pelos indígenas, e os portugueses trocavam a madeira por tecidos, facas e quinquilharias em geral. Foi a partir desse movimento, que se iniciou o processo de colonização portuguesa onde, posteriormente, foi denominado Brasil.

Em suma, a partir das questões aqui levantadas, fica claro que os portugueses não descobriram o Brasil, e tampouco são os heróis europeus que os povos indígenas precisavam. Esse era um território já ocupado por diferentes povos, com diferentes culturas, crenças, tecnologias e organizações sociais, que foi invadido pelos portugueses, os quais trouxeram consigo epidemias, brutalidade, expropriação de terras e morte. Não há, na História, um povo que civiliza o outro; o que existe é a aculturação, a troca de costumes, a difusão de valores e ideias ou, a exemplo do Império Romano e todos os países colonizadores, a subjugação: violência, morte e imposição de crença, costumes e cultura. E foi isso que houve no Brasil com a chegada dos portugueses.


Referências

FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994

PROUS, André. O Brasil antes dos brasileiros. 2. Ed. revista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2007.

OLIVEIRA, João Pacheco de. FREIRE, Carlos Augusto da Rocha. A presença indígena na formação do Brasil. Brasília: SECAD em parceria com UNESCO, 2006.


Sobre o Autor

Raphael Silveira é graduando em História na Universidade da Cidade de São Paulo (UNICID) e tem como principal área de interesse a História do Brasil, da Colônia à República, com ênfase nos olhares afro-diaspórico e indígena.


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8 comentários em “Desconstruindo o “descobrimento” do Brasil

  1. Eu sempre acreditei nisso. Que negócio é esse de dizer que os índios eram selvagens e foram “civilizados” pelos jesuítas? Impor não é civilizar e sim humilhar e fazer mal. Uma grande tristeza realmente.

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    1. Já sou um pouquito velhote, sou Português e fiquei espantado com tanta mentira escrita no texto. Na escola aprendi que o Brasil foi descoberto por acidente. Aprendi que os descobrimentos marítimos tinham como fim a descoberta de uma rota marítima para ser utilizada no comercio com terras que antes faziam chegar os produtos por terra. Mas pronto; em tudo há sempre excessos. Mas o melhor é mesmo calarmo-nos e pronto; aproveitar bem e em paz os poucos dias da passagem pela vida.

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    1. Não, o que existia era o continente da América do Sul, e o que Cabral descobriu foram linhas de costa nesse continente, o Brasil foi uma construção política que levou séculos até atingir a sua forma atual mediante o esforço colossal de gerações. Não, o Brasil não existia.

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  2. Somos desde sempre tão amansados que até a nossa forma de historiografar o nosso passado o fazemos de forma bastante equivocada e passiva. Já passou da hora de revisarmos esse tipo de narrativa de “descobrimento”, “civilização” etc…

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  3. Bom artigo para lembrarmos dos povos massacrando outros para seus interesses, na maioria economicos. Sem a ambicao ninguem investe em nada.E’ claro parar mim que nao foi um acidente que as naus vieram parar aqui.

    Os Tupis-Guaranis foram subjulgados assim como a maioria dos povos nativos das Americas que tiveram seu tempo de apogeu e queda dolorosa. Nada e’ permanente, melhor seria se os humanos aprendessem o valor do convivio em uma Terra limitada

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  4. “da nada heróica”?…, mas o vocês tem a noção dos naufrágios e inúmeras mortes mar que os Descobrimentos implicaram? O poeta perguntava justamente algo como “Ó mar salgado quanto do teu sal são lágrimas de Portugal?”… Nada heróico? Essa eu não esperava ler.

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  5. É desastrosa afirmações de Historiadores entreguistas, afirmarem que o “Brasil foi descoberto pelo português”. Na realidade o Brasil foi conquistado, com a ÚNICA finalidade do saque às riquezas da terra. Lembremos que se fortalecia a erad o mercantilismo (lucro a qq custo) que existia entre os reinos, nessa época. Em NADA, absolutamente em nada, os brancos europeus contribuiram com a cultura, a religião, os costumes dos donos da terra, os nossos irmãos indígenas (gostando ou não). Onde o europeu chegou, especialmente após os séc XV e XVI, só levou desgraça aos povos que habitavam as terras conquistadas, à força.

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